segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Carta ao Amor.


Amor;


Nunca saberei se gozo de condições para falar sobre ti. Sinto meu Davi interno querendo escrever sobre Golias, o gigante pretensamente inalcançável. O mundo inteiro fala de/em ti, soberbamente cria verdades absolutas, limita até onde tu vais, até onde tu te sustentas, produz filmes e livros com as tuas histórias, te individualiza, te coletiviza... Como poderia eu arriscar umas linhas sobre algo que ocupa todos os espaços e assume tão variadas formas?

Uma convicção eu tenho: tu és indefinível. Linda, dolorosa, insustentavelmente indefinível. Definir é explicar, ainda que limitadamente. Mas tu só te explicas quando chegas, quando invades, quando arrastas, quando abraças, quando maltratas, quando matas um sem número de vezes por dia (às vezes por hora), quando emudeces, quando sufocas, quando, ao fim, de cansaço ou de simples vontade, arrancas um sorriso, tão somente por existires. Contraditoriamente, tu te explicas sem palavras. 

Que tolice a minha, colocar-te em papel! Há tanto tempo te sinto, durmo e acordo contigo ao meu lado, dentro de mim... Não me lembro da última vez que te coloquei em vocábulos. Sempre me julguei muito incapaz para tanto. Sempre é sempre. Hoje é sempre. Mas é só a vontade de dizer que tu estás aqui. Louco e sempre. Por vezes tão quieto, calmo, calado. Nesses dias, te amo. É quando tu te identificas facilmente nos versos e melodias alheios. Chega a ser sublime, de tão simples. Em outras tantas vezes, porém, tu estás revolto, assustador, não me deixa um segundo de paz. Mas tu és mais ousado: tu te misturas entre pequenas confusões e grandes calmarias e vice-versa, o tempo todo, o tempo todo... 

O que sinto por ti? Sinceramente, muito ódio. Vejo-me dia a dia induzida à pratica do delito. Desejo cometer amoricídio da hora que abro os olhos ao momento que os cerro. Como não querer-te morto, quando só trazes reticências? Um monte de pontos sem sentido, seguidos de vontades súbitas quase nunca realizáveis, por isso mesmo, raramente realizadas... Como não querer te sufocar, quando tua paz me trai? Quando no auge da tua vivacidade, me secas, me enches de vazios só preenchidos por perguntas e especulações sem nenhuma razão? Quando tu vens, cheio de vontade de se entregar, abusas do parasitismo que estabelecemos: tu cresces e te derramas, ao passo que meu peito, fadigado de bater e de por ti trabalhar, perde, pouco a pouco as forças... Definitivamente, passaria bem sem ti, grata por perguntar. 

Não me venhas falar em liberdade, te imploro! Porque mesmo que sejas vivido livremente, tu não deixas de ser o que és. És amor, em cárcere ou ao vento. Nessas condições, tu vens com prerrogativas. Tu perquires um acordo: “Vá! Caminha, corre, te percas, se quiseres. Mas mande notícias. De preferência, pessoalmente. Aproveita, fica um pouco, te aconchegas e te espreguiças, sem pressa, que abrigo e mimos não te faltam.” Se não recolhes tal anuência, tu, amor, te desesperas, esperneias. Já não tenho capacidade para o diálogo: tu te remexes, te impões e me devastas. 

Já te destes conta do quão violador tu és? E, nas tuas violações, o quão violento te tornas? Tu, que quando nasces, finge pacificidade, pedindo um pouco mais de espaço, convencendo a teu hospedeiro que lhe abras as janelas. Iludid@, @ don@ da casa te estende as mãos, já que "Amor é quando é concedido participar um pouco mais.", como disse Lispector. Ela, certamente, não se referia a quando tu arrebatas sem licença, sem motivação, sem justificativa... Aí, tu já estás cheio de si, narcisista, irredutível. Já não precisas de fundamentação, tu arrombas a porta da frente e destranca a porta dos fundos... aquela que preferimos abrir só para os íntimos. Quando te sinto mudar a mobília, a ordem dos meus cômodos e as cores das minhas paredes, já nem me lembro como te deixei entrar. Nem preciso. Tu já estás alojado e eu, rendida. 

Tu falas alto, muito alto. Eu, silencio. O silêncio, esse eu domino. Auto-proteção, egoísta e besta, eu sei. Mas até este que reivindicava meu território, tu invades. Tu o aperfeiçoas, intensificas. Já não falo com as mãos, nem com os pés ou com gesto algum. Enquanto tu... tu gritas, escandalosamente. Estampastes uma placa de neon na varanda do meu miocárdio, com direito ao barulho infernal de mil sirenes. No meu rosto criastes as olheiras que hoje carrego. Insônia é teu segundo nome. 

Porém, nessa relação conflituosa, nada é pior do que essa dependência gratuita. Fazes-me precisar e querer ser precisada. É um precisar de que não posso me furtar, chegando a se igualar com o direito de reivindicar o direito de participar. Quem ama quer participar sim. Posso eu te questionar? Tenho dúvidas, porque desconheço o amor indiferente. Resta-me, além de todas as tuas perigosas exigências, aceitar mais esta, sendo conivente com seus frutos colhidos ou não. E se a mim não é concedido participar? Dane-se. Tu já estás aqui, pronto pra massacrar. 

Comecei essa carta sem qualquer intenção de te ofender. Verbalizando, penso, te seria honesta, leal, colocaria as cartas na mesa. Pensar em ti, no entanto, é viabilizar o exercício incontinente de libertar o que já quer extravasar. Pensar em ti é seguir pro caos, correndo o grande risco de penetrar na solidão. A solidão das palavras perdidas, que nada explicam, ou das cartas não respondidas, como essa que em vão te envio. Já me foste bem direto: tu és grande, tu és forte, tu comandas. Nem todas as pragas que eu te rogue, nem todas as mandingas que eu intente contra teu nome, nem todo o ódio que por ti eu nutra, serão capazes de te fazer partir. 

Então, deixo as portas abertas, para que (infelizmente, eu sei, ao contrário da impetuosidade com que me adentrastes) decidas, por cansaço ou por insatisfação, arrumar tuas malas de minha carne, olhos, alcance e deslumbramento e de mim sumir. Ou quem sabe, com tudo de mais bonito que te monta, decidas retribuir-me com afagos n’alma e ficar.

Ass: aquela a quem tu torturas.

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